Como temos acompanhado nas últimas semanas aqui no blog Noite Sinistra, o futebol nos reserva algumas histórias curiosas e até mesmo macabra. Esporte que movimenta paixões e ódios, tanto dentro como fora de campo. O tema de hoje é um fato que aconteceu a pouco mais de 96 anos atrás, mas que ainda hoje faz parte da história de um dos estádios de futebol mais emblemáticos da América do Sul.
O Gran Parque Central no Uruguai, é um estádio de história impar. Palco da Copa de 1930 e considerado o estádio mais antigo da América do Sul, mas a casa do Nacional é bem mais do que um dos berços do futebol uruguaio. Também é berço da própria nação uruguaia. Afinal, em 1811, 89 anos da inauguração da cancha, José Artigas seria nomeado naquele mesmo local o ‘Jefe de los Orientales’, líder que comandaria a Banda Oriental em sua independência. E, ao mesmo tempo em que o campo sagrado é um nascedouro histórico, também serviu de leito de morte. Em 5 de março de 1918, o meio-campista Abdón Porte tirou sua própria vida dentro do estádio.
Uma história de amor e loucura pelo clube
Porte era bem mais do que um simples jogador do Nacional. Era um grande ídolo da torcida. El Indio chegou ao clube em 1911. Tornou-se titular absoluto em pouco tempo e também ganhou a braçadeira de capitão, graças ao seu espírito guerreiro. Um leão na proteção do meio-campo, ajudou o Bolso (apelido do clube Nacional) a conquistar 19 títulos, incluindo quatro do Campeonato Uruguaio. Porte chegou ao seu auge em 1917, quando não apenas fez parte da seleção uruguaia na Copa América, como também ergueu a taça de campeão.
“Era um típico homem defensivo, de estilo combativo. Tenaz meio-campista de um período brilhante do futebol oriental. Abdón Porte era notável, com virtudes e qualidades extraordinárias, defensivas e de colaboração, bem conhecidas e recordadas por muito tempo, pelos torcedores do passado. Era um rapaz muito bom, amigo dos amigos”, define o escritor Luis Scapinachis, no livro ‘Gambeteando frente al gol’.
No entanto, o declínio foi implacável com Porte. Perdeu o lugar entre os titulares do Nacional. Não conseguia mais intimidar os adversários. A muralha que se montava na cabeça da área tricolor ruíra. Até mesmo os torcedores, que antes mal deixavam seu nome ser anunciado antes da partida, de tantos que eram os aplausos, começaram a vaiá-lo. Em um tempo no qual não existiam substituições, El Indio passou a frequentar as arquibancadas quando era preterido. Passou a conviver com os olhares tortos daqueles que antes o amavam. Aquilo era demais para ele. Para quem sentia que o Nacional era a própria vida.
Em 4 de março de 1918, Porte disputaria aquela que seria a sua última partida de futebol. Esteve em campo durante os 90 minutos da vitória do Nacional sobre o Charley por 3 a 1. Depois da partida, jogadores e dirigentes do Nacional se reuniram na sede do clube para festejar. Naquela mesma noite, Porte foi avisado que seria reserva em definitivo. Um golpe duro demais para o feroz meio campista. El Indio se despediu no início da madrugada, apontando o horário do último trem para sua casa. Mas, na verdade, ele voltaria ao Gran Parque Central.
Porte se dirigiu até o centro do campo onde se sagrou ídolo e viveu os dias áureos da sua vitoriosa carreira. Foi encontrado apenas na gélida manhã seguinte, pelo jardineiro do estádio. Estava caído, seu coração sem mais pulsar, com um tiro no peito. Tinha nas mãos um revólver. E, em um chapéu de palha, duas cartas. A primeira, endereçada ao presidente do clube: “Querido doutor José Maria Delgado. Peço a você e aos demais companheiros da comissão que façam por mim como fiz por vocês: façam por minha família e por minha querida mãe. Adeus querido amigo da vida”. Na mesma carta, um poema deixando evidente sua paixão pelo Bolso:
“Nacional, ainda que em pó convertidoe em pó sempre amante.Não esquecerei um instanteo quanto te amei.Adeus para sempre”.
A depressão pela reserva se somava à dor pela perda de dois de seus irmãos, também ex-jogadores do Nacional, vítimas da varíola. Porte tinha o casamento marcado para menos de um mês. Mas Porte preferiu dar cabo à própria vida ao se ver afastado de seu verdadeiro amor, em uma época onde honra e amor as cores tinha grande valia no futebol.
O velório de Porte foi acompanhado por centenas. Outros clubes uruguaios se solidarizaram com o Nacional e até mesmo o Peñarol enviou uma coroa de flores. Já o Montevidéu Wanderers se ofereceu para uma partida amistosa, que pagaria os custos da família. “O Nacional era seu ideal, ele o amava como o crente ama sua fé, como o patriota ama sua bandeira”, definiu Numa Pesquera, então dirigente tricolor. Em honra ao ídolo que deu a própria vida ao Bolso, uma das tribunas do Gran Parque Central hoje se chama Abdón Porte.
Fonte: Trivela. Via Noite Sinistra.
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